O FUTEBOL E O BARALHO*

Antônio Gramsci (1918)**

Os italianos não gostam muito do esporte. Os italianos preferem, ao esporte, o jogo de baralho. Ao ar aberto, preferem o espaço fechado de um botequim; ao movimento, a imobilidade em torno da mesa.

Observem uma partida de futebol: é um modelo da sociedade individualista. Nela se toma a iniciativa, mas essa é definida pela lei. As personalidades distinguem-se hierarquicamente, mas as distinções não ocorrem segundo o status, mas segundo as específicas capacidades de cada um. Há movimento, competição, luta, mas esses são regulados por uma lei não escrita que se chama “lealdade”, continuamente recordada pela presença do árbitro. Paisagem aberta, livre circulação de ar, pulmões sadios, músculos fortes, sempre voltados para a ação.

Um jogo de baralho. Espaço fechado, fumaça, luz artificial. Gritos, punhos na mesa e, com freqüência, na cara do adversário ou... do parceiro. Perverso trabalho do cérebro (!). Desconfiança recíproca. Diplomacia secreta. Cartas marcadas. Estratégia de chutes por baixo da mesa. Uma lei? Onde está a lei que se deve respeitar? Ela varia de lugar a lugar, tem diversas tradições, é ocasião permanente de contestações e litígios.

O jogo de baralho termina freqüentemente com um cadáver e algumas cabeças quebradas. Jamais se ouviu dizer que uma partida de futebol tivesse terminado assim.

Até mesmo nestas atividades marginais dos homens se reflete a estrutura econômico-política dos Estados. O esporte é atividade difundida nas sociedades onde o individualismo econômico do regime capitalista transformou os costumes e, ao lado da liberdade econômica e política, suscitou também a liberdade espiritual e a tolerância em face da oposição.

O jogo de baralho é o tipo de esporte próprio das sociedades atrasadas econômica, política e espiritualmente, onde a forma de convivência civil é caracterizada pelo informante da polícia, pelo policial à paisana, pela carta anônima, pelo culto da incompetência, pelo carreirismo (com os respectivos favores e benesses do deputado).

O esporte gera, mesmo em política, o conceito de “jogo leal”. O baralho produz os senhores que põem pela porta afora o operário que, na discussão livre, ousou contradizer suas opiniões.

* Tradução: Carlos Nelson Coutinho (dez.07)
** Texto não assinado, publicado em Avanti!, 26 ago. 1918, na coluna “Sotto la Mole”. Agora em Antonio Gramsci. Escritos políticos. Organização, introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, v. 1, p. 209.

Fonte:
http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=839

NECESSIDADE DE UMA PREPARAÇÃO IDEOLÓGICA DA MASSA

Antonio Gramsci (1925)

Há quase cinqüenta anos, o movimento operário revolucionário italiano vive uma situação de ilegalidade ou de semilegalidade. A liberdade de imprensa, o direito de reunião, de associação, de propaganda, foram praticamente suprimidos. A formação de quadros dirigentes do proletariado não pôde realizar-se, pois, pela via e com métodos que eram tradicionais na Itália até 1921. Os elementos operários mais ativos são perseguidos, são controlados em todos seus movimentos, em todas suas leituras: as bibliotecas operárias têm sido incendiadas ou eliminadas de outra maneira; as grandes organizações e as grandes ações de massa já não existem ou não podem organizar-se. Os militantes não participam plenamente ou só em grau muito limitado nas discussões e na oposição de idéias; a vida isolada ou as reuniões irregulares de pequenos grupos clandestinos, o hábito que pode se criar numa vida política que em outros tempos parecia exceção, suscitam sentimentos, estados de ânimo, pontos de vista que são com freqüência errôneos e inclusive às vezes mórbidos.

Os novos membros que o Partido ganha em tal situação, evidentemente homens sinceros e de vigorosa fé revolucionária, não podem ser educados em nossos métodos de ampla atividade, de amplas discussões, do controle recíproco que é próprio dos períodos de democracia e de legalidade. Anuncia-se assim um período muito grave: a massa do Partido habituando-se, na ilegalidade, a não pensar em outra coisa que nos meios necessários para escapar ao inimigo, habituando-se a ver possibilidade e organização imediata apenas com ações de pequenos grupos, vendo como os dominadores aparentemente haviam vencido e como conservam o poder com o emprego de minorias armadas e enquadradas militarmente, afasta-se insensivelmente da concepção marxista da atividade revolucionária do proletariado, e entretanto parece radicalizar-se pelo fato de que a fundo se anunciam propósitos extremistas e frases sanguinolentas, na realidade se mostra incapaz de vencer ao inimigo. A história da classe operária, especialmente na época que atravessamos, mostra como esse perigo não é imaginário. A recuperação dos partidos revolucionários, após um período de ilegalidade, caracteriza-se com freqüência por um incorrigível impulso à ação , pela ausência de toda consideração das relações reais das forças sociais, pelo estado de ânimo das grandes massas operárias e campesinas, pelas condições do armamento, etc. Assim, amiúde tem ocorrido que o Partido revolucionário se tem feito destroçar pela reação ainda não dispersada e cujas reservas não haviam sido devidamente avaliadas, entre a indiferença e a passividade das amplas massas, que , depois de todo período reacionário, se voltam muito prudentes e são facilmente objeto do pânico cada vez que se ameaça com a volta à situação da que acabaram de sair.

É difícil, em linhas gerais, que tais erros não sejam cometidos; por isso, o Partido tem que se preocupar com eles e desenvolver uma determinada atividade que tenda especialmente a melhorar sua organização, a elevar o nível intelectual dos membros que se encontrem em suas fileiras no período do terror branco e que estão destinados a converter-se no núcleo central e mais resistente a toda prova e a todo sacrifício do Partido, que guiará a revolução e administrará o Estado proletário.

O problema aparece assim mais amplo e complexo. A recuperação do movimento revolucionário e especialmente sua vitória, lançam ao Partido uma grande massa de novos elementos. Estes não podem ser rechaçados, especialmente se são de origem proletária, já que precisamente sua adesão é um dos sinais mais reveladores da revolução que se está realizando; porém o problema que se estabelece é o de impedir que o núcleo central do Partido seja submerso e desagregado pela nova enroladora onda. Todos recordamos o que tem ocorrido na Itália, depois da guerra, no Partido Socialista. O núcleo central, constituído por camaradas fiéis à causa durante o cataclismo, se restringiu até reduzir-se a uns 16.000. No Congresso de Liorna estavam representados 220.000 membros, quer dizer, que existiam no Partido 200.000 aderentes depois da guerra, sem preparação política, alheios ou quase de toda noção da doutrina marxista, presa fácil dos pequenos burgueses declamadores e fanfarrões que constituíram nos anos 1919-1920 o fenômeno do maximalismo. Não parece casual que o atual chefe do Partido Socialista e diretor do Avanti seja o próprio Pietro Nenni, entrado no Partido Socialista depois de Liorna, porém este fato resume e sintetiza em si mesmo toda debilidade ideológica e o caráter distintivo do maximalismo do pós-guerra; porém isto seria inevitável, se nosso Partido não tivesse uma linha a seguir também neste terreno, se não procurasse a tempo reforçar ideológica e politicamente seus atuais quadros e seus atuais membros, para fazê-los capazes de conter e enquadrar massas ainda mais amplas sem que a organização sofra demasiadas sacudidas e sem que a imagem do Partido seja alterada.

Temos apresentado o problema em seus termos práticos mais imediatos. Há porém uma base que é superior a toda contingência imediata.

Nós sabemos que a luta do proletariado contra o capitalismo se desenvolve em três frentes: o econômico, o político e o ideológico. A luta econômica tem três fases: de resistência contra o capitalismo, isto é, a fase sindical elementar; de ofensiva contra o capitalismo para o controle operário da produção; de luta para a eliminação do capitalismo através da socialização. Também a luta política tem três fases principais: luta para conter o poder da burguesia no estado parlamentar, quer dizer, para manter ou criar uma situação democrática de equilíbrio entre as classes que permita ao proletariado organizar-se e desenvolver-se; luta pela conquista do poder e pela criação do Estado operário, quer dizer, uma ação política complexa através da qual o proletariado mobiliza em torno de si todas as forças sociais anticapitalistas (em primeiro lugar a classe campesina), e as conduz à vitória; fase da ditadura do proletariado organizado em classe dominante para eliminar todos os obstáculos técnicos e sociais, que se interponham à realização do comunismo.

A luta econômica não pode se separar da luta política, e nem uma nem outra podem ser separadas da luta ideológica.

Em sua primeira fase sindical, a luta econômica é espontânea, quer dizer, nasce inelutavelmente da mesma situação na que o proletariado se encontra no regime burguês, porém não é por si mesma revolucionária, quer dizer, não leva necessariamente à derrocada do capitalismo, como têm sustentado e continuam sustentando com menor êxito os sindicalistas. Tanto é verdade, que os reformistas e até os fascistas admitem a luta sindical elementar, porém sustentam que o proletariado como classe não deveria realizar outra luta que a sindical. Os reformistas se diferenciam dos fascistas somente enquanto sustentam que se não o proletariado como classe, ao menos os proletários como indivíduos, cidadãos, devem lutar também pela democracia burguesa; em outras palavras, lutar apenas para manter ou criar as condições políticas para luta de resistência sindical.

Posto que a luta sindical se reveste de fator revolucionário, é mister que o proletariado a acompanhe com a luta política, que dizer, que o proletário tenha consciência de uma luta geral que envolve todas as questões mais vitais da organização social, que dizer, que tenha consciência de lutar pelo socialismo. O elemento “espontaneidade” não é suficiente para a luta revolucionária, pois nunca leva a classe operária além dos limites da democracia burguesa existente. É necessário o elemento consciência, o elemento “ideológico”, que dizer, a compreensão das condições em que se luta, das relações sociais em que vive o operário, das tendências fundamentais que operam no sistema destas relações, do processo de desenvolvimento que sofre a sociedade pela existência em seu seio de antagonismos irredutíveis, etc.

As três frentes da luta proletária se reduzem a uma só, para o Partido da classe operária, que o é precisamente porque assume e representa todas as exigências da luta geral. Certamente não se pode pedir a todo operário da massa ter uma completa consciência de toda a complexa função que sua classe está resoluta a desenvolver no processo de desenvolvimento da humanidade, pois isso deve ser pedido aos membros do Partido. Não se pode propor, antes da conquista do Estado, modificar completamente a consciência de toda a classe operária; seria utópico, porque a consciência da classe como tal se modifica somente quando tenha sido modificado o modo de viver da própria classe, isto é, quando o proletariado se converta em classe dominante, tenha a sua disposição o aparato de produção e de mudança do poder estatal. Porém o Partido pode e deve em seu conjunto representar esta consciência superior; de outro modo, aquele não estaria na cabeça, senão na cauda das massas, não as guiaria, mas seria arrastado. Por isso, o Partido deve assimilar o marxismo e deve assimilá-lo em sua forma atual, como leninismo.

A atividade teórica, a luta na frente ideológica, sempre foi descuidada no movimento operário italiano. Na Itália, o marxismo (por influxo de Antonio Labriola) tem sido mais estudado pelos intelectuais burgueses para falsificá-lo e adequá-lo ao uso da política burguesa, que pelos revolucionários. Assim temos visto no Partido Socialista Italiano conviver juntas pacificamente as tendências mais díspares, temos visto como opiniões oficiais do Partido as concepções mais contraditórias. Nunca imaginou a direção do Partido que para lutar contra a ideologia burguesa, para liberar as massas da influência do capitalismo, fora necessário antes de tudo difundir no Partido mesmo a doutrina marxista e defendê-la de todos os ataques. Esta tradição pelo menos não tem sido interrompida de modo sistemático e registra uma notável atividade continuada.

Diz-se, contudo, que o marxismo teve até aqui muita sorte na Itália e em certo sentido isto é verdade. Porém também é verdade que tal fortuna não tem ajudado ao proletariado, não tem servido para criar novos meios de luta, não tem sido im fenômeno revolucionário. O marxismo, ou algumas afirmações separadas dos escritos de Marx, tem servido à burguesia italiana para demonstrar que pela necessidade de seu desenvolvimento era necessário prescindir da democracia, era necessário pisotear as leis, era necessário rir da liberdade e da justiça; que dizer, se tem chamado marxismo, pelos filósofos da burguesia italiana, a comprovação que Marx fez dos sistemas que a burguesia empregará, sem necessidade de recorrer a justificações... marxistas, em sua luta contra os trabalhadores. E os reformistas, para corrigir esta interpretação fraudulenta, se fizeram democráticos, se converteram aos santos consagrados do capitalismo. Os teóricos da burguesia italiana demonstram habilidade ao criar o conceito da “nação proletária” e que a concepção de Marx devia aplicar-se à luta da Itália contra os outros Estados capitalistas, não à luta do proletariado italiano contra o capitalismo italiano; os “marxistas” do Partido Socialista têm deixado passar sem luta estas aberrações, que foram aceitas por um, Enrico Ferri, que passavam por um grande teórico do socialismo. Esta foi a fortuna do marxismo na Itália: servir de ingrediente para todos os indigestos molhos que os mais imprudentes aventureiros da pluma põem à venda. Marxistas assim têm sido Enrico Ferri, Guillermo Ferrero, Achille Loria, Paolo Orano, Benito Mussolini...

Para lutar contra esta confusão que se tem criado, é necessário que o Partido intensifique e torne sistemática sua atividade no campo ideológico, que se imponha como um dever dos militantes o conhecimento da doutrina do marxismo-leninismo, ao menos em seus termos mais gerais.

Nosso Partido não é um partido democrático, ao menos no sentido vulgar que comumente se dá a esta palavra. É um Partido centralizado nacional e internacionalmente. No campo internacional, nosso Partido é uma simples seção de um partido maior, de um partido mundial. Que repercussões podem ter e já há tido este tipo de organização, que também é uma necessidade da revolução? A própria Itália se dá uma resposta a esta pergunta. Por reação ao costume estabelecido pelo Partido Socialista, no que se discutia muito e se resolvia pouco, cuja unidade pelo choque contínuo das frações, das tendências e com freqüência os projetos pessoais se rompia numa infinidade de fragmentos desunidos, em nosso Partido se havia terminado com as discussões que não levavam a nada. A centralização, a unidade de direção e unidade de concepção se havia convertido numa paralisia intelectual. Também contribuiu a necessidade da luta incessante contra o fascismo, que verdadeiramente desde a fundação do nosso Partido já havia passado a sua fase ativa e ofensiva, porém contribuíram também as errôneas concepções do Partido, tal como são expostas nas “Teses sobre a tática” apresentadas ao Congresso de Roma. A centralização e a unidade se concebiam de modo demasiado mecânico: o Comitê Central, e o Comitê Executivo era todo o Partido, ao invés de representá-lo e dirigi-lo. Se esta concepção fosse permanentemente aplicada, o Partido perderia seu caráter distintivo político e se converteria, no melhor dos casos, num exército (e um exército de tipo burguês); perderia o que é sua força de atração, se separaria das massas. Para que o Partido viva e isto em contato com as massas, é mister que todo membro do Partido seja um elemento político ativo, seja um dirigente. Precisamente para que o Partido seja fortemente centralizado, se exige um grande trabalho de propaganda e de agitação em suas fileiras, é necessário que o Partido, de maneira organizada, eduque a seus militantes e eleve seu nível ideológico. Centralização quer dizer especialmente que em qualquer situação, inclusive em estado de sítio reforçado, inclusive quando os comitês dirigentes não podem funcionar por um determinado período ou foram postos em condições de não estar relacionados com toda a periferia, todos os membros do Partido, cada um em seu ambiente, estejam em situação de orientar-se, de saber extrair da realidade os elementos para estabelecer uma orientação, a fim de que a classe operária não se desmoralize senão que sinta que é guiada e que pode ainda lutar. A preparação ideológica da massa é, por conseguinte, uma necessidade da luta revolucionária, é uma das condições indispensáveis para a vitória.

Fonte: http://www.pacocol.org/es/Biblioteca/005_Gramsci/11.htm

ESPONTANEIDADE E DIREÇÃO CONSCIENTE

Antonio Gramsci (1931)*

Podem ser dadas várias definições sobre a expressão espontaneidade, porque o fenômeno a que se refere é multilateral. Há que se observar, de início, que a espontaneidade pura não se dá na história coincidindo com a mecanicidade pura. No movimento mais espontâneo os elementos de “direção consciente” são simplesmente incontroláveis, sem deixar documentos identificáveis. Pode por isso dizer-se que o elemento da espontaneidade é característico da “história das classes subalternas”, e até dos elementos mais marginais e periféricos dessas classes, os quais não tenham chegado à consciência de classe para si e por isso não suspeitam sequer que sua história possa ter importância alguma, nem que tenha nenhum valor deixar dela rastros documentais.

Existe, pois, uma multiplicidade de elementos de direção consciente nesses movimentos, porém nenhum deles é predominante nem ultrapassa o nível da sabedoria popular de um determinado estrato social, do senso comum, ou seja, da concepção de mundo tradicional daquele determinado estrato.

Este é precisamente o elemento que De Man contrapõe empiricamente ao marxismo, sem dar-se conta (aparentemente) de que está caindo na mesma posição dos que, atrás de descobrir o folclore, a feitiçaria, etc., e atrás de demonstrar que estes modos de conceber têm uma raiz historicamente robusta e estão tenazmente presos à psicologia de determinados estratos populares, crêem haver superado com isso a ciência moderna e tomaram por ciência moderna os libidinosos artigos das revistas de difusão popular da ciência e as publicações por entrega. Este é um verdadeiro caso de teatrologia intelectual, da qual há mais exemplos: os pesquisadores da feitiçaria relacionados com Maeterlinck, que sustentam que há que se recolher o fio da alquimia e da feitiçaria, cortado pela violência, para por a ciência em um caminho mais fecundo de descobrimentos, etc. Porém De Man tem um mérito incidental: mostra a necessidade de se estudar e elaborar os elementos da psicologia popular, historicamente e não sociologicamente, ativamente (ou seja, para transformá-los, educando-os, numa mentalidade moderna) e não descritivamente como ele faz; porém esta necessidade estava pelo menos implícita (e talvez inclusive explicitamente declarada) na doutrina de Ilich, coisa que De Man ignora completamente. O fato de que existam correntes e grupos que sustentam a espontaneidade como método demonstra indiretamente que em todo movimento “espontâneo” há um elemento primitivo de direção consciente, de disciplina. A este respeito há que se fazer uma distinção entre os elementos puramente ideológicos e os elementos de ação prática, entre os estudiosos que sustentam a espontaneidade como método imanente e objetivo do devir histórico versus os politiqueiros que a sustentam como método político. Nos primeiros se trata de uma concepção equivocada; nos segundos se trata de uma contradição imediata e mesquinha que revela uma origem prática evidente, a saber, a vontade prática de substituir uma determinada direção por outra. Também nos estudiosos tem o erro uma origem prática, porém não imediata como no caso dos políticos. O apoliticismo dos sindicalistas franceses antes da guerra continha ambos elementos: era um erro teórico e uma contradição (continha o elemento soreliano e o elemento de concorrência entre a tendência anarquista-sindicalista e a corrente socialista). Era, ademais, conseqüência dos terríveis fatos de Paris de 1871: a continuação, com métodos novos e com uma teoria brilhante, dos trinta anos de passividade (1870-1900) dos operários franceses. A luta puramente econômica não podia aborrecer a classe dominante, senão ao contrário. O mesmo pode dizer-se do movimento catalão, que não “aborrecia” a classe dominante mais do que reforçava objetivamente o separatismo republicano catalão, produzindo um bloqueio industrial republicano propriamente dito contra os latifundiários, a pequena burguesia e o exército monárquico. O movimento de Turim foi acusado ao mesmo tempo de ser espontaneísta e voluntarista ou bergosniano (!).

A acusação contraditória mostra, uma vez analisada, a fecundidade e a justeza da direção dada. Essa direção não era abstrata, não consistia numa repetição mecânica das fórmulas científicas ou teóricas; não confundia a política, a ação real, com a definição teorética; aplicava-se a homens reais, formados em determinadas relações históricas, com determinados sentimentos, modos de conceber, fragmentos de concepção de mundo, etc., que resultavam de combinações espontâneas de um determinado ambiente de produção material, com a casual aglomeração de elementos sociais díspares. Este elemento de espontaneidade não se esvaiu, nem mesmo se depreciou: foi educado, orientado, depurado de todo elemento estranho que pudesse corrompê-lo, para torná-lo homogêneo, porém de um modo vivo e historicamente eficaz, com a teoria moderna. Os mesmos dirigentes falavam de espontaneidade do movimento, e era justo que falassem assim: tal afirmação era um estimulante, um energético, um elemento de unificação em profundidade; era antes de tudo a negação de que se tratara de algo arbitrário, artificial, e não historicamente necessário. Dava à massa uma consciência teorética de criadora de valores históricos e institucionais, de fundadora de Estados. Esta unidade da espontaneidade e a direção consciente, ou seja, da disciplina, é precisamente a ação política real das classes subalternas enquanto política de massas e não simples aventura de grupos que se limitam a apelar às massas.

Sobre este propósito se estabelece uma questão teórica fundamental: pode a teoria moderna encontrar-se em oposição com os sentimentos espontâneos das massas? (Espontâneos no sentido de não devidos a uma atividade educadora sistemática por parte de um grupo dirigente já consciente, senão formado através da experiência cotidiana iluminada pelo senso comum, ou seja, pela concepção tradicional popular de mundo, coisa que muito vulgarmente se chama instinto e não é senão uma aquisição também, só que primitiva e elementar).

Não pode estar em oposição: entre uma e outras há diferença quantitativa, de grau, não de qualidade: tem que ser possível uma redução, por assim dizer, recíproca, um passo de umas à outra e vice-versa (Recordar que Kant queria que suas teorias filosóficas estivessem de acordo com o senso comum; a mesma posição se tem em Croce; recordar a afirmação de Marx na Sagrada Família, segundo a qual as fórmulas da política francesa da Revolução se reduzem aos princípios da filosofia clássica alemã). Descuidar – e mais ainda, depreciar – os movimentos chamados espontâneos, ou seja, renunciar a dar-lhe uma direção consciente, a elevá-los a um plano superior inserindo-os na política, pode amiúde ter conseqüências sérias e graves. Ocorre quase sempre que um movimento espontâneo das classes subalternas coincide com um movimento reacionário da direita da classe dominante, e ambos por motivos concomitantes: por exemplo, uma crise econômica determina descontentamento nas classes subalternas e movimentos espontâneos de massas, por uma parte, e, por outra, determina complôs dos grupos reacionários, que se aproveitam da debilitação objetiva do governo, para intentar golpes de estado. Entre as causas eficientes destes golpes de estado há que se incluir a renúncia dos grupos responsáveis em dar uma direção consciente aos movimentos espontâneos para convertê-los assim num fator político positivo. Exemplo das Vésperas sicilianas e discussões dos historiadores para averiguar se se tratou de um movimento espontâneo ou de um movimento concertado: me parece que nas Vésperas sicilianas se combinaram os dois elementos: a insurreição espontânea do povo italiano contra os provenzales – ampliada com tanta velocidade que deu a impressão de ser simultânea e, portanto, de basear-se num acordo, ainda que a causa fosse a opressão, já intolerável em toda área nacional – e o elemento consciente de diversa importância e eficácia, com o predomínio da conjuração de Giovanni da Procida com os aragoneses. Outros exemplos podem ser tomados de todas as revoluções do passado, nas quais as classes subalternas eram numerosas e estavam hierarquizadas pela posição econômica e pela homogeneidade. Os movimentos espontâneos dos estratos populares mais vastos possibilitam a chegada ao poder da classe subalterna mais adiantada pela debilitação objetiva do Estado. Este é um exemplo progressivo, porém no mundo moderno são mais freqüentes os exemplos regressivos.

Concepção histórico-política escolástica e acadêmica, para a qual não é real e digno senão o movimento consciente cem por cento e até determinado por um prazo traçado previamente com todo detalhe, o que corresponde (coisa idêntica) à teoria abstrata. Porém a realidade abunda em combinações do mais raro e é o teórico que deve identificar nessas raridades a confirmação de sua teoria, traduzir para a linguagem teórica os elementos da vida histórica, e não o reverso, exigir que a realidade se apresente segundo o esquema abstrato. Isto não ocorrerá nunca e, portanto, essa concepção não é senão uma expressão de passividade (Leonardo sabia descobrir o número de todas as manifestações da vida cósmica, inclusive quando os olhos do profano não viam mais que arbítrio e desordem).

* GRAMSCI, A. Escritos Políticos (1931).

Fonte:
http://www.webpcu.org/f_8.htm

A CRISE DA PEQUENA BURGUESIA

Antonio Gramsci (1924)*

A crise política produzida pelo assassinato de Matteotti está em pleno desenvolvimento e não se pode todavia dizer qual será seu desenlace final.

Esta crise apresenta aspectos diversos e múltiplos. Assinalamos antes de tudo a luta que se tem reanimado, em torno do governo entre forças adversárias do mundo plutocrático e financeiro, para a conquista por parte de uns e a conservação por parte de outros com influência predominante no governo do Estado. À oligarquia financeira, que se acha na cabeça da banca comercial, se contrapõem as forças que em um tempo se agrupam em torno da fracassada banca de desconto e hoje tendem a reconstruir um organismo financeiro próprio que deveria deslocar a predominante influência da primeira. Sua consigna de ordem é a “constituição de um governo de reconstrução nacional”, com a eliminação do lastro (se entendem os patrocinadores da atual política financeira). Trata-se em substância de um grupo de aproveitadores não menos nefastos que os outros, que por baixo da máscara de indignação pelo assassinato de Matteotti e em nome da “justiça”, passam para a abordagem dos cofres do Estado. O momento é bom, e naturalmente não há que deixá-lo escapar.

Sob ponto de vista da classe operária, o fato mais importante é, contudo, outro e precisamente é enorme a repercussão que os acontecimentos destes dias tem nas classes médias e pequeno-burguesas: se precipita a crise da pequena burguesia.

Se se tem em conta a origem e a natureza social do fascismo, se compreenderá a importância enorme deste elemento que vem a rachar as bases da dominação fascista. Este imprevisto e radical deslocamento da opinião pública, polarizando-se em torno dos partidos da chamada “oposição constitucional”, põe estes partidos na primeira fila da luta política: devem dar-se conta, como algumas camadas da mesma classe operária, da necessidade e das condições que tal luta impõe.

No campo operário não tem faltado a imediata repercussão deste deslocamento de força: o proletariado tem hoje a sensação de já não estar isolado na luta contra o fascismo, e isto, unido ao imutável espírito antifascista que o anima, determina em seu ânimo a convicção de que a ditadura fascista poderá ser abatida, e dentro de um período de tempo bem mais curto do que se havia pensado no passado. O fato de que a revolta moral de toda a população contra o fascismo na classe operária se tem manifestado com paralisações parciais, como forma enérgica da luta; o haver sentido a necessidade e haver considerado possível sob certas condições a greve nacional contra o fascismo, demonstra que a situação vai mudando com uma rapidez imprevista. Quem tenha dúvidas a este propósito, que vá com os operários e verá como são acolhidos os melancólicos comunicados da Confederação Geral do Trabalho implorando a calma, aos que define como “elementos irresponsáveis” e “agentes provocadores”, quando fazem propaganda para ação: estamos habituados a ler esta linguagem nos comunicados policiais.

Da atitude e da conduta dos diversos partidos dispostos hoje na frente da luta antifascista se pode em seguida fazer uma primeira afirmação: a impotência da oposição constitucional. Estes partidos, no passado, com a oposição ao fascismo tendiam evidentemente a atrair para si a pequena burguesia que, vivendo à margem da plutocracia dominante, padecem em parte as conseqüências de seu predomínio absoluto e esmagador na vida econômica e financeira do país. Aqueles tendem para sistemas menos ditatoriais de governo. Estes partidos podem hoje dizer que têm alcançado seu objetivo, que constitui para eles a premissa para conduzir seriamente a luta contra o fascismo. Sua ação, contudo, que na situação atual deveria ter um valor decisivo, se mostra incerta, equívoca e insuficiente. Reflete em sua substância a impotência da pequena burguesia para enfrentar por si só a luta contra o fascismo, impotência determinada por um complexo de razões, das quais deriva também a atitude característica destas camadas eternamente oscilantes entre o capitalismo e o proletariado.

Estas cultivam a ilusão de resolver a luta contra o fascismo no terreno parlamentar, esquecendo que a natureza fundamental do governo fascista é a de uma ditadura armada, apesar de todos os adornos constitucionais que trata de aplicar à milícia nacional. Esta, por outro lado, não tem eliminado a ação das “esquadras” e da ilegalidade: o fascismo em sua verdadeira essência está constituído pelas forças armadas que operam diretamente por conta da plutocracia capitalista e dos setores agrários. Abater o fascismo significa em esmagar definitivamente estas forças, e isto não se pode conseguir senão no terreno da ação direta. Qualquer solução parlamentar resultará impotente. Qualquer que seja o caráter do governo que tal solução possa derivar, tratar da recomposição do governo de Mussolini ou da formação de um governo chamado democrático (o que por outro lado é bastante difícil), nenhuma garantia poderá ter a classe operária de que seus interesses e seus direitos mais elementares serão assegurados, ainda que nos limites permitidos em um Estado burguês e capitalista, enquanto aquelas forças não sejam eliminadas.

Para conseguir isto, é mister lutar contra aquelas no terreno em que é possível vencer seriamente, diga-se, no terreno da ação direta. Seria uma ingenuidade confiar esta tarefa ao Estado burguês, ainda que seja liberal e democrático, já que não vacilará em recorrer a sua ajuda no caso de não se converter numa síntese bastante forte para defender o privilégio da burguesia e manter submisso o proletariado.

De tudo isso deriva a conclusão de que uma oposição real ao fascismo pode ser levada somente pela classe operária. Os fatos demonstram quanto corresponde à realidade a posição assumida por nós na ocasião das eleições gerais, opondo à oposição constitucional a “oposição operária” como a única base real e eficaz para derrotar o fascismo. O fato de que as forças não operárias convergem na frente não altera nossa afirmação segundo a qual a classe operária é a única classe que pode e deve ser o guia dirigente nesta luta.

A classe operária deve encontrar, contudo, sua unidade na qual encontra toda a força necessária para enfrentar a luta. Por isso a proposta do Partido Comunista a todas as organizações proletárias para uma greve geral contra o fascismo, por isso nossa atitude frente aos impotentes choramingos social-democratas.

* Primeira Edição: L´Unitá, 2 de Julho de 1924.

Fonte:
http://www.librodot.com